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E quando recebemos para atendimento na clínica uma pessoa em condição de abuso no relacionamento?

Atualizado: 12 de dez. de 2023

Dados disponíveis no relatório "Poder Judiciário na aplicação da Lei Maria da Penha", divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça apontam que houve um aumento significativo das denúncias e dos processos por prática de violência contra a mulher.


Enquanto que em 2017 houve registro de 455.641 novos casos de femincídio e violência doméstica contra a mulher nos tribunais estaduais, em 2022 este número subiu para 640.867. Observando processos judiciais pendentes, em 2017 havia 919.346 ações sobre o tema, enquanto em 2022 o número aumentou para 1.062.457 processos.


Infelizmente, por ser um problema frequente na sociedade, na prática clínica inevitavelmente iremos nos deparar com esta realidade dolorosa. Faz-se necessária uma abordagem sensível, bem informada e assertiva no campo da saúde mental. A psicoterapia pode ser uma ferramenta crucial para a reconstrução da saúde emocional e da qualidade de vida das pessoas que sofrem com relacionamentos abusivos.




Mas, o que pode ser considerado um abuso?


Entendamos aqui como sendo uma condição de abuso a prática frequente de atos que causam danos físicos e/ou psicológicos em uma pessoa. Danos estes que afetam de maneira signitificativa a autoestima, a funcionalidade, a qualidade de vida, a saúde física e mental da pessoa acometida.


Quais são os tipos de abuso?


O abuso físico envolve o uso da força física de forma intencional, com o objetivo de controlar forçadamente, ferir, lesar, provocar dor, sofrimento, ... deixando, ou não, marcas evidentes no seu corpo.


O abuso psicológico, por sua vez, envolve falas e gestos que levam a vítima a se sentir invalidada, desqualificada, intimidada ... com o objetivo de manipular emocionalmente para deixar a pessoa abusada subjugada, dependente, paralisada. 


Um tipo de abuso psicológico é a prática de gaslighting. Acontece quando a pessoa em condição de abuso ouve com frequência narrativas inventadas, distorcidas ou informações selecionadas de modo conveniente com a intenção de manipular a vítima. Pode chegar ao ponto da pessoa abusada duvidar da própria capacidade de perceber as coisas, da própria memória e colocar em cheque a própria sanidade mental.



O que fazer quando uma cliente relata que está sofrendo abusos no relacionamento amoroso?


A depender do grau de violência que está sendo relatado em sessão pode ser importante e necessário acionar imediatamente orgãos públicos responsáveis por investigar e repreender o crime praticado. É bom lembrar que o código de ética da psicologia (ou de qualquer outra profissão) não está acima da lei. Esta é uma das poucas condições diante das quais é possível quebrar o sigilo e fazer uma denúncia. 


Aos terapeutas menos experientes, recomendo buscarem supervisão com um terapeuta mais experiente e marcarem para receberem orientações com algum conselheiro do conselho de psicologia de sua região.



O que é importante considerar nas primeiras sessões?


É essencial, durante a fase de avaliação, estabelecer um bom vículo terapêutico, para que a pessoa consiga expor o que sente, pensa, gostaria. De maneira empática investigar com detalhes:

  • O que acontece?

  • Como acontece?

  • Em que contextos acontece?

  • Com que frequência acontece?

  • Desde quando acontece?

  • Quem mais sabe o que acontece?

  • Há algum suporte familiar/social?

  • Há outras pessoas envolvidas neste contexto de conflito?

  • Há registros/provas armazenados que explicitem o que aconteceu?

  • Já fez (ou pensou em fazer) algo para lidar com isso?

  • O que poderia acontecer de bom e de ruim se a pessoa tentar alguma ação diante daquele contexto?



Ainda focando na fase de avaliação, é muitíssimo provável que uma pessoa que está em uma relação abusiva apresente sintomas ansiosos, depressivos e de estresse excessivo. É importante investigar se há critérios diagnósticos de transtorno de estresse pós-traumático, para incluir no plano de tratamento psicoeducação, estratégias e intervenções da Terapia Cognitivo-Comportamental específicas para tratar estas queixas apresentadas.


O que pode influenciar para que a condição de violência física ou psicológica se mantenha?


A duração e a intensidade dos conflitos, como se mantém e se agrava uma condição de abuso, pode depender de diversas variáveis: ter ou não dependentes atrelados à relação, o grau de impulsividade/agressividade que apresenta o agressor, haver ou não uso/abuso de substâncias, haver dependência financeira, ter acesso à proteção física eficaz caso faça um movimento de denúcia, ter baixo senso de autocompaixão, ...


A vítima tem sua parcela de responsabilidade quando está envolvida em uma relação com qualquer condição de abuso?


Em terapia será sempre importante e necessário validar as emoções da vítima, expressar repulsa aos atos abusivos e responsabilizar o agressor. Esta é a atitude ética e humanista a ser tomada.


Incentivar a cliente que vivencia experiências de abuso a entrar em contato e expressar as emoções compatíveis ao contexto será importante dentro do processo terapêutico. Voltando um pouco à pergunta acima, pode ser importante auxiliar para que a cliente entre em contato com a raiva em algum momento, por exemplo. É uma emoção que, quando ativa, nos faz repelir algo ou alguém.



Quais são as características da personalidade de uma pessoa que se envolve em um relacionamento abusivo?


A pessoa abusada não tem um perfil psicológico específico. Entretanto, o maior tempo de permanência em uma relação com práticas de abuso; a mais forte dependência emocional; transitar de um relacionamento abusivo para outro; ou não se perceber como alguém que não é merecedor de uma relação de amor saudável; são algumas condições que podem ter relação com algumas características da personalidade disfuncionais. Crenças, esquemas e modos podem ser identificados e, ao longo do tempo em terapia, apresentar mudanças.


Quais seriam os dados relevantes do passado, as características da família de origem e os possíveis esquemas que a pessoa que se vê aprisionada em uma relação de abuso costuma apresentar?


No processo de autoconhecimento podemos, de maneira delicada, auxiliar a cliente a entender algumas experiências vividas no passado que podem ter influenciado para que a pessoa se dessensibilize com condições de abuso. Ter vivido ou presenciado condições de abuso, por exemplo. A pessoa pode considerar que sejam aceitáveis algumas atitudes agressivas em sua vida, relativizando o que não deveria ser relativizado, sendo mais passiva, benevolente, perdoadora, ...


Dentro destas condições supracitadas, é possível haver o relato de uma família de origem que não atendeu necessidades básicas de estabilidade, segurança, cuidado, amor, durante a primeira infância. É possível, portanto, que a pessoa apresente um ou mais dos esquemas iniciais desadaptativos atrelados ao domínio de desconexão/rejeição: privação emocional, abandono, defectividade, isolamento social.


Crenças de desvalor, as quais podem ser identificadas durante as sessões de psicoterapia, explicam a baixa autoestima e costumam ter uma relação com o fato das pessoas em relações abusivas terem vivido experiências na infância em ambientes que não incentivaram de maneira adequada o desenvolvimento e a percepção da própria capacidade de funcionar, ter bom desempenho, sobreviver, de maneira independente. Desta forma, esquemas de dependência, fracasso, emaranhamento e vulnerabilidade ao dano, podem ser ativados na vida adulta.

Ainda focando dados relevantes do passado, é possível que não tenha havido durante a infância o incentivo para se tomar consciência e expressar as emoções de valência negativa. Familiares que incentivavam a supressão de emoções e um foco excessivo nos desejos, sentimentos e socitações dos outros, às custas das próprias necessidades. Neste caso, esquemas de subjugação, autossacrifício e busca de aprovação podem estar presentes e serem ativados com frequência na dinâmica dos relacionamentos.


É possível observar alguns modos esquemáticos que são mais ativados nestes casos?

Na prática clínica, quando observamos modos esquemáticos em clientes que sofrem com relacionamentos abusivos, é bastante perceptível a ativação dos modos criança vulnerável, capitulador complacente e protetor desligado.

Quando o modo criança vulnerável está ativado há uma forte sensação de exclusão, rejeição, perigo. Há uma forte inseguraça na conexão e no vinculo, podendo haver demonstrações intensas de medos. 


O modo capitulador complacente, por sua vez,  é desenvolvido para se evitar possíveis agressões ou consequências nocivas. Com o modo capitulador complacente ativado a pessoa se submete aos desejos dos outros, desconsiderando suas próprias necessidades. A supressão emocional acontece por haver um medo de sofrer represárias, entrar em conflito ou ser rejeitado. 


Já o modo protetor desligado é ativado para se evitar o contato com a dor. Neste caso a pessoa se encastela, se isola, fica apática, como se desligasse as emoções. Funcionante neste modo há uma sensação de vazio, tedio. Pode haver, em alguns casos, uma esquiva emocional com a ativação de compulsões para tentar gerar uma sensação momentânea de prazer alienante.


Além da terapia, há alguma outra forma de incentivar a pessoa a refletir sobre a condição de abuso? Para que ela entenda melhor o que está acontecendo e se direcione a uma mudança?



Como as situações de violência constantes em relacionamento amoroso costumam acontecer mais em relacionamentos tendo as mulheres como vítima, recomendo a leitura de dois textos informativos presentes no site do mada - mulheres que amam demais anônimas. Disponível no site grupomadabrasil.com.br, acessando os icones: “sou uma mada”; “as características de uma mulher que ama demais”.



Há muitos filmes e séries que podemos recomendar aos clientes e que retratam condições de abuso físico e/ou emocional em relacionamentos amorosos. 


A série “big little lies” (2017) tem excelentes atuações e apresenta de forma bem realista como se estabelece e se mantém uma relação de abuso. Mostra como pode se dar a busca por ajuda psicológica e a tentativa de rompimento de um relacionamento abusivo. 


Na série “big little lies”, em uma sessão de terapia, a psicoterapeuta realiza uma intervenção com a cliente que sofre há anos em uma relação abusiva. A vítima faz uma exposição imaginária, uma projeção. Ela imagina sua amiga em seu lugar, sofrendo exatamente o que ela sofria. Isso a faz entrar em contato com emoções que são mais compatíveis ao contexto e a ativar mais a autocompaixão. 


Imagem: Série Big little lies


Outra obra que que retrata o sofrimento ao tentar se livrar de condições de abuso é a série “Maid” (2021). Nesta série uma jovem mãe que consegue um emprego limpando casas para tentar escapar de um relacionamento muito abusivo.


Listo aqui alguns filmes que também exploram muito bem essa temática: “Dormindo com o inimigo” (1991); “Garçonete” (2007); “Entre segredos e mentiras” (2011); “A garota do trem” (2016);  “Grandes olhos” (2014).


Para além dos relacionamentos amorosos, a  premiada série “The morning show” (2019) nos traz excelentes reflexões sobre o abuso emocional/psicológico, ilustrando pensamentos e comportamentos de assediadores dentro de diversos contextos. 


Por fim, uma curiosidade: o filme “À meia luz” (1944), um filme de suspense com terror psicológico, apresenta um personagem abusivo/manipulador. O nome original do filme, “Gaslight”, deu origem ao termo “gaslighting”, que inica que há um condição de abuso intencional com “manipulações mentais”.



Considerações finais


Casos de violência requerem não apenas a identificação e responsabilização dos agressores, mas também uma compreensão profunda dos aspectos psicológicos e sociais que influenciam na origem e que podem perpetuar essas dinâmicas.


Diante de um caso no qual há condições de abuso, é essencial que o psicoterapeuta tenha competências clínicas bem desenvolvidas para que consiga conduzir todo processo terapêutico com segurança.


Desde o acolhimento empático, com a investigação detalhada e a validação das emoções trazidas; passando pela avaliação dos sintomas e de hipóteses diagnósticas; favorecendo a conscientização de que existe uma condição de abuso e que se deve romper com a mesma; com a psicoeducação sobre as queixas trazidas e sobre o modo de funcionamento da cliente e do relacionamento; com a aplicação de estratégias e intervenções que podem levar à melhora da autoestima, da funcionalidade, da saúde emocional e da qualidade de vida da cliente.


Por fim, desejamos que a psicologia, em sintonia com diversos outros setores da sociedade, não apenas aborde as consequências do abuso, mas também empregue esforços contínuos para que haja mais prevenção de atos de violência e relacionamentos abusivos.




 

Referências:


Young, J., Klosko, J., Weishaar, M. (2018). Terapia do esquema: guia de técnicas cognitivo-comportamentais inovadoras. Porto Alegre: Artmed.

Wainer, R. et al. (2016). Terapia cognitiva focada em esquemas: integração em psicoterapia. Porto Alegre: Artmed.

Paim, K, Cardoso, B. (2019). Terapia do esquema para casais. Porto Alegre: Artmed.


Elaborado por:

Rafael Thomaz. Pós-doutor em saúde mental pelo IPUB/UFRJ. Diretor do FOCO: Instituto Carioca de TCC.

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