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Vivemos uma epidemia de narcisismo?


Vamos refletir sobre características disfuncionais das pessoas com transtorno de personalidade narcisista? Apresentarei no texto a seguir dicas sobre avaliação, informações relevantes para incluir na conceitualização do caso, cuidados necessários na construção e manutenção de um bom vínculo terapêutico, montagem e condução do plano de tratamento.


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Antes, uma curiosidade.

Narciso, na mitologia grega, filho do deus do rio Cefiso e da ninfa Liríope, era muito belo, orgulhoso e arrogante. Apesar de ser muito bajulado, despertando amor em homens e mulheres, vivia a sensação de vazio e solidão porque ninguém era bom o suficiente para estar consigo. A ninfa eco atraiu Narciso para o leito do rio. Narciso se encantou com a própria imagem no espelho d’água e definhou, paralisado, admirando a si mesmo.


Brené Brown trouxe uma reflexão em seu livro “A coragem de ser imperfeito”. Ela disse ter a impressão de que há uma “epidemia de narcisismo”. Para afirmar isso, ela nos faz pensar com que frequência nos deparamos hoje em dia com pessoas que apresentam grande necessidade de expor aspectos de suas vidas que consideram positivos e esconder aspectos que entendem que os fariam se sentir expostos de maneira negativa e vulneráveis. Os principais aspectos sociais que nos levariam a este cenário seriam as mídias sociais, o estímulo excessivo ao consumo e à competitividade.


Na minha opinião há um certo exagero na expressão “epidemia de narcisismo”, dado que, de acordo com o DSM-5, há outros critérios que precisam ser levados em consideração para que uma pessoa seja considerada narcisista. O transtorno de personalidade narcisista tem como características mais frequentes a falta de empatia, o senso de superioridade, busca por “grandeza”, atrelada a uma preocupação excessiva por admiração.


O comportamento narcisista tem origem em estilos de apego inadequados; no caso, a pessoa nunca experimentou uma conexão saudável com seu cuidador principal, deixando-a sem as ferramentas necessárias para internalizar uma conexão saudável. De acordo com os estudos da teoria do apego de John Bolby, um vínculo seguro e afetuoso no início da vida influencia muito para um ser humano conseguir estabelecer relações com mais ingredientes de empatia e confiança. À medida que as crianças crescem e ampliam o círculo social, experimentar interações que favoreçam a aquisição de empatia e de outras habilidades socioemocionais será essencial para o desenvolvimento e a manutenção de relações saudáveis.


A terapia do esquema tem ganhado destaque como opção de tratamento para pessoas que preenchem critérios diagnósticos para transtorno de personalidade narcisista. Tanto que na terceira edição do livro “Terapia cognitiva dos transtornos de personalidade”, são descritas pelos renomados Beck, Davis e Freeman. Pela visão da terapia do esquema proposta por Jeffrey Young, que tem como uma de suas influências a teoria do apego, diversos esquemas iniciais desadaptativos e modos disfuncionais podem ser identificados com frequência nos sujeitos que apresentam transtorno de personalidade narcisista. Há dados relevantes da infância que são mais comuns em pessoas com traços narcisistas, quando comparados com a população em geral: experiências de desconexão/rejeição, limites prejudicados, problemas na orientação sobre como se relacionar com os outros e possíveis cobranças, estímulo à competição de forma excessiva.


Os principais esquemas desadaptativos identificados em pessoas narcisistas são: defectividade, privação emocional, fracasso e desconfiança; levam comumente o sujeito a experienciar sensações de impotência, vazio/solidão, frustração e apreensão. Como esquemas desadaptativos de supercompensação são comuns em pessoas narcisistas, os esquemas de:

1 - Autocontrole insuficiente (busca por prazeres momentâneos, autocalmantes e autoestimulantes, sem levar em consideração consequências);

2- Merecimento/grandiosidade (podendo haver padrões exploradores, autoengrandecedores e intimidadores);

3 - busca de aprovação (um esforço constante para obter atenção, aprovação); e

4 - padrões excessivos de cobrança (demonstrando insatisfação constante com o que tem e uma ideia, sempre presente, de competição). Para quem quer aprofundar o conhecimento sobre este tema, vale à pena ler e aprender sobre os modos: onisciente (“deixe-me explicar como é”); pessoa muito importante (“tenho regras especiais”); troféu (“imagem é tudo”); e invencível (“não tenho fraquezas”).


Sobre os instrumentos subjetivos que avaliam crenças, esquemas, modos, é relevante informar que algumas respostas aos questionários podem se apresentar de forma não compatível com o que estamos observando durante os atendimentos, em especial quando o terapeuta já entende como se dão as relações do sujeito narcisista com os outros no mundo. Isso acontece porque muitos sujeitos com transtorno de personalidade podem apresentar um autoconceito distorcido. Por exemplo, certa vez atendi um paciente com transtorno de personalidade narcisista que dizia amar muito o próprio filho enquanto o mesmo era um bebê. Entretanto, este o via como um projeto seu, uma espécie de extensão de si mesmo. No momento em que o filho desenvolveu a própria individualidade, começou a fazer escolhas próprias, havendo dissonância nas opiniões, começou a haver expressão constante e intensa de raiva e frustração por parte do pai.


Pela linha mais Beckiana também é possível compreender bem os clientes com características de narcisismo. Estas pessoas podem deixar transparecer boa autoestima, entretanto, crenças de desvalor e de desamor costumam estar presentes: “Eu sou defeituoso”; “Eu sou incapaz”; “Eu sou um fracasso”; “Eu não sou digno de ser amado”. Como crença condicional nos deparamos com: “Se o outro me conhecer tal como sou, irá perceber que sou... tal coisa ruim”. Por isso, como estratégias compensatórias estes sujeitos nem cogitam expor a própria vulnerabilidade e costumam expor os aspectos que entendem como sendo positivos, que acham que os levarão a ter boa avaliação, aprovação ou reconhecimento dos outros que consideram importante naquele momento. A gravidade do comprometimento da personalidade e o transtorno que causam na vida das pessoas com quem convivem depende do grau em que atitudes compensatórias de superioridade tornam-se superdesenvolvidas: “sou uma pessoa rara e especial”; sou superior aos outros”; “os outros precisam saber como sou especial para que eu possa inspirá-los”; “mereço regras especiais, diferentes das que os outros seguem, aplicáveis somente a mim”.


A principais metas no tratamento do transtorno de personalidade narcisista são:

1) identificar e enfraquecer crenças disfuncionais e modos desadaptativos de enfrentamento,

2) aumentar a capacidade de entender e empatizar com os sentimentos dos outros, levando o cliente a respeitar com maior aceitação às regras e normas que regulam as relações,

3) desenvolver habilidades que favoreçam a regulação emocional, especialmente visando melhorar a capacidade de controle dos impulsos, tolerância à frustração, com expressão adequada das emoções e;

4) alinhar a autoimagem com as características positivas que de fato o sujeito apresenta: características físicas, forças, virtudes, competências.


No que diz respeito à relação terapêutica, qualquer cliente que preencha critérios para transtorno de personalidade exige do terapeuta grande preparo. Algumas crenças e pensamentos distorcidos do próprio terapeuta podem ser ativados e levar o profissional a se sentir encantado, seduzido, irritado ou ameaçado. Mesmo com boas competências terapêuticas desenvolvidas é desejável buscar uma supervisão de caso clínico.


Ainda sobre a relação terapêutica, é importante alertar que a imensa maioria das pessoas com características de narcisismo procuram inicialmente a psicoterapia por queixas secundárias, chegam na fase da pré-contemplação. “Bater de frente é perda total”. Encontrar um momento apropriado para dar um diagnóstico ou debater de forma mais consistente crenças é uma tarefa difícil e pode ativar resistência. Fazer uma avaliação detalhada e uma boa conceitualização do caso, com mais ingredientes de acompanhamento empático e orientações, aumenta a probabilidade de se criar e manter um bom vínculo terapêutico.


Nas sessões iniciais é possível identificar e ajudar o cliente a entender os traços disfuncionais de sua personalidade, especialmente os dados relevantes do passado e a influência de eventos na formação de suas crenças e esquemas. Vale a pena investir tempo nas primeiras sessões para fazer psicoeducação sobre empatia, controle dos impulsos e sobre ferramentas que ele pode aprender e, quando aplicadas, irão favorecer a melhor regulação emocional.

O uso de imagens mentais, como estratégia mais experiencial-emocional, e role play, como estratégia mais cognitiva-comportamental, podem facilitar o entendimento de como se dão as ativações dos modos disfuncionais e levar o cliente a experimentar maior aceitação, sensação de recebimento de afeto genuíno e atuação dentro da perspectiva do modo adulto saudável.


Treinamento de autocompaixão e práticas de mindfulness podem surtir bom efeito para construir habilidades internas de regulação emocional. Exercícios de bondade amorosa podem ser especialmente benéficos para ajudar a pessoa com transtorno de personalidade narcisista a se conectar a um senso de humanidade comum.


Nos filmes e nos seriados os roteiristas entenderam que os personagens com características de transtorno de personalidade anti social e transtorno de personalidade narcisista atraem olhares. Impressiona a quantidade de opções que exploraram esta temática. Cuidado, porque há muitas obras que exploram mal o tema. Em "Cinquenta tons de cinza”, por exemplo, há uma romantização do que seria na vida real uma relação de grave abuso emocional e físico. O detalhe é que Mr. Grey não pensa que é o melhor ou tenta se vender como sendo o máximo; na ficção ele tem diversos atributos que são apresentados com a intenção de se mostrar superiores quando comparado com a imensa maioria da população em geral: bonito, inteligente, bem sucedido profissionalmente e financeiramente, educado, excelente performance na cama...


Então, por fim, darei algumas dicas de obras que apresentam personagens bem elaborados com características de narcisismo.


As primeiras temporadas de “House of cards” nos apresenta uma relação esquemática de um casal com características de transtornos de personalidade antissocial e narcisista.


“House” traz um personagem com enorme capacidade de inteligência lógica, mas muito egocêntrico. O Dr. House apresenta grande dificuldade para se conectar de forma empática e baixo senso de autocrítica.




O seriado “The boys” explora, de forma caricata, as características do narcisismo em personagens com superpoderes, que foram criados em uma condição de apego inseguro evitativo. A falta de empatia, a arrogância, a desconfiança, a falta de controle dos impulsos e a baixa tolerância à frustração “gritam” nos personagens super.





A série “Undoing” conta a história de uma mulher, interpretada por Nicole Kidman, que convive com um marido médico que está sendo acusado de um grave crime. Chama a atenção o esforço e o rompimento com os limites éticos nas relações para manter “as aparências e o alto padrão”.


Para trocar uma ideia sobre influências sociais, recomendo o filme “Pequena Miss Sunshine”. Explora muito bem a estimulação inadequada por competição na infância. A necessidade de se autoafirmar e criar uma autoimagem chancelada pela opinião dos outros.



“O lobo de Wall Street”, por sua vez, conta com a brilhante atuação de Leonardo Di Caprio em uma história baseada em fatos reais. O personagem principal ilustra os esquemas de grandiosidade, autocontrole insuficiente e padrão excessivo de cobrança. Uma vida transtornada, afetando a vida de todos com quem se relaciona, ultrapassando limites de regras e normas sociais em busca de dinheiro, fama, status, poder.


 

Referências:

- Brown, B. (2013). A coragem de ser imperfeito. Rio de Janeiro: Sextante.

- Beck, A.; Davis, D.; Freeman, A. (2017). Terapia cognitiva dos transtornos de personalidade. 3a ed. Porto Alegre: Artmed. Capítulo 14.

- Gilbert, P. (2020). Terapia focada na compaixão. São Paulo: Hogrefe.

- Young, J; Klosko, J.; Weishaar, M. (2008). Terapia do esquema: guia de técnicas cognitivo-comportamentais. Porto Alegre: Artmed.


Texto elaborado por: Rafael Thomaz

Doutor em saúde mental pelo IPUB/UFRJ

Terapeta cognitivo-comportamental, professor e pesquisador

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