É muito comum na clínica chegarem ao consultório clientes relatando que passaram por uma grande decepção. Todos nós estamos sujeitos a sermos surpreendidos, em algum momento da vida, entendendo que fomos traídos, enganados, abusados. Por ser um espaço sigiloso e acolhedor, a dificuldade de perdoar é um tema comum dentro das sessões de psicoterapia.
Por definição, Ryan Niemic coloca que perdoar é aceitar as limitações do outro; dar uma segunda chance às pessoas; não ser vingativo.
Estudos científicos apontam que a prática do perdão favorece a saúde mental, não só porque traz um bem-estar momentâneo. Peterson e Seligman apresentaram correlatos positivos entre o perdão e sentimentos menos intensos de raiva. Apontaram ainda que pessoas que perdoam apresentam menores níveis de estresse, ansiedade e depressão. Além disso, seus comportamentos pró-sociais criam uma autoimagem positiva: os outros tendem a descrever como sendo uma pessoa amável. Circuitos cerebrais responsáveis pela empatia e emoções positivas são ativados quando ocorre o perdão.
Mas por que perdoar é tão difícil para muitas pessoas?
Quando passamos por uma situação que entendemos que foi uma traição, vivemos por um momento a dissonância cognitiva. A experiência vivida (traição) não é condizente o que se pensava a respeito da outra pessoa. Ou seja, há duas cognições inconsistentes, o comportamento observado e o conceito pré-estabelecido a respeito daquela pessoa. A magnitude da dissonância varia conforme a importância e discrepância entre as cognições. Por isso, quanto mais intensa for a “dor emocional”, mais importante será a variável tempo para que haja entendimento e aceitação.
O terapeuta cognitivo-comportamental pode auxiliar neste processo, favorecendo primeiramente maior entendimento e aceitação. Ser acolhedor e empático pode permitir maior abertura para o cliente falar sobre o assunto. Deve-se fazer perguntas para ajudar o cliente a entender melhor o que, como e por quê aconteceu. Não com o intuito de fazê-lo controlar mais o que está por vir, mas para assimilar que há muitas variáveis que não são controláveis por nós. O terapeuta pode também debater a importância de aceitarmos nossa vulnerabilidade: a ideia de que todos nós em algum momento podemos passar por uma adversidade como esta.
Como terapeutas cognitivo-comportamentais, levamos em consideração que a forma como interpretamos uma situação influencia de forma direta na emoção ativada e na intensidade da mesma. Se um indivíduo tem crenças enraizadas com conteúdo de desconfiança ou de menos valia, isso pode levá-lo a ativar sentimentos mais desagradáveis, intensos e duradouros. Algumas distorções cognitivas são mais comuns de serem ativadas diante de uma situação de traição/decepção e podem ser alvo de questionamentos e debates.
A tirania do deveria:
“Eu não deveria ter confiado tanto”
“Ele não deveria ter feito isso comigo”
“Ele deveria ter valores como os meus e ter me respeitado”
Essa expressão (tirania do deveria), abordada pela primeira vez pela psiquiatra americana Karen Horney, é também muito levada em consideração por Albert Ellis como possível fonte de sofrimento emocional. Diz respeito a uma ruminação de pensamentos de que eu ou o outro “deveria...” ou “não deveria...” ter feito ou ser algo. Ruminar verbos conjugados no pretérito imperfeito não ajuda. Pelo contrário, faz com que a pessoa revisite mentalmente uma situação que já passou e reviver sentimentos extremamente desagradáveis.
Personalização
“Eu fui traído(a) porque eu não sou uma pessoa atraente.”
“Eu sou ingênuo(a) demais, sempre permito ser sacaneado(a)”
“Tudo de ruim acontece comigo. Eu sou amaldiçoado.”
Neste caso a pessoa pode estar atribuindo a si mesma uma responsabilidade/ culpa excessiva por algo que aconteceu. Nessa distorção, a pessoa tende a atribuir de forma exagerada culpa a si mesma nas mais diversas situações que vive. Apresenta dificuldade para enxergar as variáveis outras (externas) que podem ter influenciado naquele acontecimento.
Hipergeneralização
“Ele(a) sempre me enganou. Era tudo uma mentira.”
“Ele(a) irá me trair de novo em qualquer oportunidade parecida.”
“Nenhuma pessoa é confiável.”
Nesta distorção cognitiva, a pessoa pega uma experiência vivida e a torna abrangente. Palavras absolutistas, do tipo: sempre, nunca, toda vez, aparecem no discurso. A pessoa resgata na memória um evento negativo e estabelece que irá acontecer novamente em qualquer contexto minimamente semelhante.
Além de auxiliar o(a) cliente a questionar pensamentos e elaborar melhor o que aconteceu, a prática do perdão pode envolver escolha. Algumas escolhas ativam o sentimento de angústia, tais como as relacionadas às dúvidas abaixo, por exemplo:
Manter ou não a relação amorosa com a pessoa que me traiu?
Manter ou não uma sociedade com a pessoa que quebrou minha confiança?
Manter ou não a amizade com alguém que me decepcionou?
Ao contrário do que muitas pessoas pensam, perdoar NÃO envolve esquecer tudo, ter que obrigatoriamente retomar a relação ou ter que obrigatoriamente identificar um real arrependimento do outro. Afinal, há casos nos quais, por exemplo, a pessoa pode demonstrar arrependimento e voltar a agir de forma inadequada, chegando até mesmo ao ponto de se tornar uma relação de abuso.
O Terapeuta tem como papel auxiliar o cliente a não se “aprisionar” em memórias ruins e estimular a reflexão sobre:
O perdão ser um processo interno e não externo; não depende do outro.
A importância de sermos empáticos, entendendo que todos nós seres humanos podemos errar em algum momento e podemos ter uma segunda chance.
Os aspectos positivos e negativos do relacionamento; visando investigar se há ou não uma relação abusiva e tentar reduzir o sofrimento emocional no processo de escolha.
Texto elaborado por: Dr. Rafael Thomaz. Psicólogo clínico, professor e pesquisador.
Referências:
Gilbert, P. (2020). Terapia Focada na Compaixão. São Paulo: Hogrefe.
Niemic, R. (2017). Intervenções com forças de caráter. Associação Latino Americana de Psicologia Positiva. São Paulo: Hogrefe.
Goleman, D; Davidson, R. (2016). A ciência da meditação: como transforma a mente, cérebro e corpo.
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